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0 CERCO

DO PORTO NA FREGUESIA

(1832-1833)

Não foi pacífica, de modo algum, a transição do regime absoluto para o regime liberal. Na sequência da Revolução, no Porto, de 24 de Agosto de 1820, da responsabilidade do grupo «Sinédrio», (data e participantes evocados na toponímia da cidade, como o negociante Barros Lima), será implantado o liberalismo, logo seguido pela contra-revolução absolutista.

O triunfo definitivo do regime liberal só chegará com a assinatura da Convenção de Évora-Monte, em 1834.

Entretanto, vivera-se uma dolorosa guerra civil, de que um dos episódios marcantes terá sido o longo assédio à cidade do Porto, pelo exército de D. Miguel, desde o Freixo a S. João da Foz, na margem Norte, entre Julho de 1832 e Agosto do ano seguinte.

Ocorreram em Campanhã momentos decisivos do cerco. Recordamos o grande ataque do dia de S. Miguel, de 1832, 29 de Setembro, em que os «migueis» romperam as linhas de defesa oriental, entrando pela estrada de S. Cosme até à Rua do Prado, posteriormente Rua 29 de Setembro, hoje Rua do Heroísmo.

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Banco de luta fraticida.

Das seis para as sete da manhã, penetraram nas linhas liberais, defendidas pelas baterias do Bonfim, Cativo (1) e Fojo e, após renhido combate, cerca de nove horas depois, foram repelidos com graves perdas.

D. Pedro terá assistido ao combate, no qual se distinguiu o tenente-coronel Pacheco, defendendo a posição entre a estrada de S. Cosme e a bateria do mirante de Barros de Lima, e também o coronel de cavalaria João Nepomuceno de Macedo que, com uma força de 300 a 400 homens, deteve o avanço inimigo no zona do Bonfim. Em 1835, João Nepomuceno foi agraciado com o título de Barão de S. Cosme, como é recordado na toponímia oitocentista.

0 lugar da Cruz das Regateiras foi também palco de violentos combates, particularmente em 17 de Novembro de 1832.

As posições realistas, a leste da cidade, estavam assim distribuídas, como informa Luz Soriano: «Em frente de Avintes, na margem Norte do Douro, achava-se colocada a coluna móvel, do comando do coronel António Joaquim Guedes, que se estendia pela Quinta do Freixo, Valbom, Campanhã e forte do Tine, até ao campo do Chão Verde e alto de Rio Tinto, onde o mesmo coronel tinha o seu quartel-general.

Seguia-se a esta a 4.ª Divisão, sob o comando do marechal de campo Augusto Pinto de Morais Sarmento, de quartel em Pedrouços ; uma das brigadas desta divisão ocupara Arroteia, Cruz das Regateiras, outra Águas Santas e Areoza; a 3.ª linha ia do forte de Contumil até à esquerda da estrada de Valongo; e a quarta, a parte que ia desde ali até ao forte de Sobral e Paranhos, tocando em S. Mamede de Infesta(2)».

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Carta Topográfica das Linhas do Porto de Luz Soriano (História da cidade do Porto Tomo II pp. 28-29)

Quanto às posições liberais, semelhantes às que já tinha havido em 1809, quando da 2.ª invasão francesa, principiavam no Seminário e daí seguiam à Quinta da China, Lomba, Bonfim, Goelas de Pau, ermida do Cativo, Póvoa de Cima...

Estas linhas eram cobertas, nos pontos mais altos, por artilharia.

Foi a bateria da Póvoa de Cima que deu o nome à actual Rua da Bataria (sic), junto da Avenida de Fernão de Magalhães, antigo Monte Belo» (3).

Em Março de 1833 D. Pedro manda levantar uma trincheira no Monte das Antas a fim de aí serem estabelecidas importantes fortificações. Os trabalhos foram entregues ao Capitão Costa, a cargo do qual estava o distrito de fortificações «desde a estrada de Campanhã até à Póvoa»(4). No seu «Diário», relata-nos ao longo de Março, Abril e Maio de 1833, os trabalhos de fortificações das linhas, constantemente atacadas e refeitas, sob «péssimo tempo», lutando com a falta de homens, de materiais e de financiamentos: «As obras das Antas vão muito lentamente, por haver poucos operários». «O inimigo atacou o pinhal quando se estava no corte de madeiras. Os galegos e carpinteiros fugiram. Neste momento de confusão puderam escapar-se dois prisioneiros»: «os operários da estrada de Lordelo não queriam trabalhar por falta de pagamento» (5).

Prolongados com tais dificuldades, os trabalhos foram ainda mais retardados com a urgência de fortificação do Covelo, posição miguelista, entretanto ocupada pelo «Exército Libertador».

Em 5 de Julho de 1833, verificou-se violento tiroteio nas Antas e em frente da Quinta da China. A vitória liberal está próxima. Eis como a «Chronica Constitucional de Lisboa» descreve os decisivos combates de 25 de Julho:

«Escolheram pois os rebeldes o dia 25 para efectuarem o seu ataque, há tantos dias preconizado ; e tendo feito passar nos dias 23 e 24, da margem esquerda para a direita do Douro, todas as forças, que ali tinham disponíveis, organizaram duas fortes massas, das quais uma composta de seis Brigadas se estabeleceu entre Matosinhos e a Areosa; e a outra, composta de cinco Brigadas ocupava as posições entre o rio e o distrito das Antas. (...)

Entretanto, com o fim de ver se a fortuna ainda se decidia a sorrir-se-lhe, logo que viu frustado o seu terceiro ataque na direita, mostrou na sua extrema esquerda a outra massa, que naquele sítio se achava disposta: as suas colunas, formadas entre o rio e a estrada de Valongo, deviam servir de apoio a um ataque que intentou entre a Quinta da China e a posição do Bonfim. Os nossos piquetes, colocados na frente destas duas posições foram obrigados por forças superiores a retirar-se sobre as suas reservas; porém o Chefe do Estado-Maior Imperial, [Marechal Saldanha], que, em quanto S.M.I. [D. Pedro] observava o ataque na esquerda, se achava na direita em frente da posição em que o inimigo pretendia estabelecer-se, carregando bravamente, com o seu Estado-Maior, se precipitou sobre ele que, espavorido de semelhante audácia, fugiu em debanda a buscar protecção das duas colunas, as quais não obstante ter-se ouvido claramente repetir por muitas vezes o toque para que atacassem, não deram um passo para a frente.

Desenganados por último os rebeldes de que o novo Capitão [Bourmont] não os conduzia mais facilmente à vitória do que os outros que até agora os tem sacrificado, tiveram por grande fortuna recolher-se outra vez às linhas, das quais sem proveito haviam saído. À hora e meia por toda a parte tinha cessado o fogo. Os dous campos de batalha juncados de cadáveres atesta que a perda do inimigo em mortos e feridos não seria, em ambos eles, menor de mil e quinhentos a dois mil homens: nós não engajamos no fogo mais de três mil ; com eles conservamos todas as nossas posições, como se tais combates não houvesse tido lugar; e não tivemos mais de duzentos fora de combate» (6).

Aproximemos desta visão oficial, publicada no «Diário do Governo» da época, os testemunhos dos prejuízos imensos sofridos pelos moradores de Campanhã.

A trilogia fatídica da guerra, da fome e da peste (a «cholera morbus» fora propagada na cidade pelas tropas estrangeiras do general Solignac, desembarcadas a 1 de Janeiro de 1833), inscreve-se na «terra queimada», destruída e estéril.

Tão afectada foi Campanhã que os seus moradores requereram o «abatimento da Décima pelo ano em que o território foi ocupado pelo Exército Rebelde por que não cultivaram ou não colheram»(7).

A resposta chega, negativa, em 25 de Abril de 1835.

A lei de 31 de Agosto de 1833 incumbira as Câmaras Municipais da nomeação de Comissões de «Liquidação de Perdas e Danos causados pelos usurpadores».

Em Campanhã, a comissão é empossada a 23 de Outubro do mesmo ano e é composta pelos seguintes membros, todos lavradores:

- António Martins da Luz, do Monte

- António Lourenço Dias

- José Correia Neves, ambos de Godim

- Manuel Pereira, do Pinheiro

- José Ferreira dos Santos, de Vila Meã (8)

Os lesados apresentavam à Comissão, mercê pormenorizada relação dos danos sofridos nos seus bens, para além da quebra de rendimentos, uma proposta do valor, com vista a indemnização.

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Uma declaração de perdas e danos.

O montante global atingido pelos prejuízos, em dezenas de processos, seria muito elevado.

São pedidas indemnizações pelos rendimentos não auferidos, abandonadas forçosamente as propriedades e as casas. Apontam-se o abate de árvores, castanheiros, oliveiras, árvores de fruto, a destruição das vinhas, os incêndios, a demolição de casas e muros, os danos de equipamentos industriais - «tive de prejuízo na minha Fábrica de Cal 450$00», em Rego Lameiro (9), incluindo moinhos, utensilagens de casas agrícolas e, evidentemente, são também arrolados pormenorizadamente os recheios das casas destruídas, discriminando-se mobiliário, loiças e roupas.

A Igreja Paroquial de Campanhã, localizada no palco das operações, foi encerrada pelos «Rebeldes» em 5 de Dezembro de 1832, reabrindo apenas a 18 de Agosto de 1833. Entretanto, baptizados e enterramentos ocorriam ou «no Senhor de Bonfim e cidade do Porto», ou «para lá das linhas», em Rio Tinto, Valbom, S. Cosme e S. Pedro da Cova(10).


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(1) «Cativo» seria a alcunha de Vicente Gomes Guimarães, subemprazador de um prazo sito nas ruas de Sacais e Bonfim que a Câmara do Porto emprazara, com a faculdade de poder subemprazar, a Francisco de Sousa Cyrne, em 18 de Agosto de 1723. Livro 53 de Próprias, fl, 48, lo Janeiro 1839.

(2) Simão José da Luz Soriano «História do Cerco do Porto», Tomo II, Porto, 1890, pág. 153, 154.

(3) Cunha e Freitas, «0 Primeiro de Janeiro», 21 de Janeiro de 1975, Toponímia Portuense, Rua da Bataria.

(4) «Um diário Inédito e Desconhecido do «Cerco do Porto» lo «Jornal do Capitão Costa») publicado por António Cruz. 0 Tripeiro, Série Nova, Ano VI, n.° 8, Agosto 1987, pàg. 250 a 254.

(5) Ibidem, pàg. 252-253.

(6) Suplemento à Chronice Constitucional de Lisboa, n.° 3, 27 de Julho de 1833, pág. lo. A grafia actualizada.

(7) AHMP Correspondência 4976 (23.a) 26 de Janeiro 1835.

(8) AHMP Vereações 4975, fl. lo verso.

(9) AHMP 4994 - Autos de Liquidação de Perdas e Danos do Cerco do Porto

(10) Declarações «Livro de Assentos de Baptismo» de 1832 e do «Livro dos Defuntos», transcritas por Padre A. Tavares Martins, «Paróquia de Santa Maria de Campanhã», pàg. 16 e 17.


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