INTRODUÇÃO

Nunca a vida de um povo se rendeu às palavras ou estudos que se propuseram expressá-la e compreendê-la. É da vida e da história nunca coincidirem quanto é duma e doutra a implicação recíproca. Fazer história é tanto «marcar» em acto(s) a vida de uma sociedade como proceder à sua reconstituição e interpretação. No mesmo processo em que se encontram, vida e história se distanciam, reproduzindo em permanência a natureza desta relação. Falar de história viva representa tornar o futuro presente no sentido em que a acção em curso faz apelo e antecipa uma vida que ainda não é. A abordagem histórica implica fazer do passado presente, pressupondo o valor significante da interacção dos factos de cada um dos tempos e a expectativa do seu impacto futuro. História e vida, cada qual a seu modo, actualiza passado e futuro, deixando esvair a dimensão do tempo, no acto de re-invenção e projecção que configuram.

Escrever a história de um povo é aceitar o desafio de «entrar» na sua história viva, correndo o risco do inviável e do insucesso: do inviável, pelo afeiçoamento e operação selectiva a que o presente sujeita o passado e, particularmente, no acesso à dimensão subjectiva dos factos; do insucesso, subjacente à opção de perspectiva, que vale o que valham os princípios e a leitura da actualidade, na malha de princípios e leituras possíveis e igualmente pertinentes. A abordagem a que procedemos e que apresentamos sobre a Freguesia de Campanhã representa assim um enorme atrevimento que o decurso do estudo progressivamente tornou mais consciente. À complexidade presente dos processos e projectos de transformação, acresce um longo e riquíssimo passado bem como um vasto acerbo documental, disperso e fraccionado, a requerer grande persistência e prudência nas buscas e tratamento e, simultaneamente, a pôr em causa, a cada passo, o que já se tinha por adquirido.

Às expectativas vulgares que vão consolidando a ideia de que numa Monografia se há-de encontrar tudo e todo o objecto sobre que se debruça, contrapomos uma postura que, pensando a realidade social como em processo de revelação, torna o seu conhecimento cumulativo e sempre provisório. Qualquer Monografia se integra numa encruzilhada de interpelações e adere a um movimento de procuras múltiplas com princípio que se tateia e futuro imprevisível. Resistindo ab initio à tentação fácil e porventura vantajosa de elidir ou escamotear a complexidade e opacidade do real, optou-se por compartilhar responsabilidades e competências disciplinares na produção do estudo e por autonomizar os contributos que os diferentes aspectos vieram a merecer. Na selecção e delimitação dos temas, procurou-se o equilíbrio óptimo entre o interesse dos destinatários primários e os recursos disponíveis, salvaguardando, quanto possível, uma abordagem dinâmica e interactiva entre passado e presente, freguesia e cidade, natural e socio-cultural, poder e gentes, tradição e modernidade.

Num contexto espaço-temporal em que valores e modelos de sede urbana derrubam as fronteiras tradicionais do diferente, diluindo e apagando os seus símbolos e marcas, torna-se exemplar e promissor que a junta de Freguesia de Campanhã tome em suas mãos a tarefa de reconstituir e fazer reviver a longa cadeia de agentes que, na combinação criativa de projectos e processos, «identificaram» o seu espaço social, moldando-se e moldando-lhe forma e conteúdo. É o ponto de vista local que, emergindo da multiplicidade de abordagens distantes e marginais, se procura cumprir, na tentativa imperiosa e insubstituível de que os agentes em cena se encontrem com a sua história e lhe dêem futuro. Correndo deliberadamente o risco de sermos redutores, valorizamos fontes locais de informação e quisemos pôr em evidência a relevância do papel que forças locais e suas estruturas representativas, não obstante a malha apertada dos recursos e dependências, revelaram no imaginar e produzir do seu destino.

0 presente estudo monográfico assume-se e propõe-se como dado e como instrumento. 0 quadro e a lógica de intervenções recentes no espaço de Campanhã bem como de projectos que sobre o mesmo impendem conduziram-nos a um posicionamento activo que se efectivará no impacto que possa ter ao nível daquelas intenções e projectos, mas e sobretudo no despertar e congregar de vontades e energias que venha a provocar junto de quantos a tenham como sua. Independentemente da validade das razões e dos propósitos, passará sempre e necessariamente pelo reforço de coesão, capacidade de iniciativa e organização, o fazer inflectir a lógica de descaracterização e desagregação dum espaço de referência e convivência o qual, apesar e, por que não, devido a ela, se foi preservando.
0 tempo espaço revisitado, hoje simplesmente designado Campanhã, remete-nos para formas de vida milenares, presentes ainda no imaginário das suas gentes e abundantemente consagradas na toponímia local. Da panóplia de topónimos, recordamos e destacamos aqui e agora que esta terá sido a terra de Santa Maria «D'Os Azares» ou Azeres (de Aser...) de ceptro (que. já foi flor ou fruto) na mão direita e menino (acariciando. pombinha) no braço esquerdo, alvo de festejos imemoriais e inesquecíveis, pelo fim das colheitas no «Dia das Sete Senhoras» quando jovens, em ambiente de folguedos e orgia repunham à sua maneira o ritual com referências ancestrais do «Enterro das Merendas» (a Senhora da Entrega...). Tocamos a bordadura de qual «Buraco Negro» Celeste que perpassando as culturas mesopotâmicas antigas, nos projecta aos primórdios da história onde, num mesmo movimento, a terra sujeita o homem e o homem segrega o mito. Haja quem procure, por entre a bruma do mistério, ir sempre mais além na procura do insondável de que se alimenta a vida dos povos.., esta a nossa expectativa.


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