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CAMPANHÃ NA TRANSIÇÃO

DA IDADE MÉDIA

PARA A IDADE MODERNA

Campanhã foi, naturalmente, objecto de disputa entre os poderes estabelecidos, como observamos a propósito das Inquirições de 1258. Um século depois, parece ter-se colocado, de novo, ao rei, a necessidade de mandar verificar os títulos de posse de vilas, castelos, coutos e honras. Este Édito ou «Chamamento Geral», de 1335, a que procedeu D. Afonso IV, é acatado pelo Bispo do Porto, D. Vasco Martins, que compareceu a justificar o fundamento legal da sua jurisdição nos coutos. No entanto, «vistas as inquisições que foram tiradas por razão da jurisdição nos seus coutos, entre eles o de Campanhã»(1), foi detectado que a Igreja do Porto exorbitava dos seus direitos, ao incluir no couto a aldeia de Contumil, «e que hora que a tragia por da dita igreja do Porto» (2).

A situação anterior ao abuso é reposta por carta régia de 14 de Junho de 1341: «a aldeia de Contumil jazia fora do Couto e que era da jurisdição do julgado de Gondomar (...) E que os da dita aldeia vão fazer e receber direito assim no cível como no crime perante o juiz de Gondomar»(3). Quanto ao couto, é confirmado à igreja do Porto «por marcos e por divisões e que não havia juiz nem vigairo nem chegador no dito couto. E provava-se que os vigairos do Bispo ouviam os feitos cíveis (...) e que os feitos do crime dos moradores do dito Couto ouviam-nos os juizes do Porto» (4).

Ora se a delimitação da jurisdição é assim reposta pela autoridade régia, sem possibilidade de conflitos, são estes frequentes quanto a questões de demarcação territorial. Onde começavam, onde terminavam os lugares apontados como extremas? Limites estabelecidos em épocas de população reduzida, o aumento demográfico e a urgência de fazer valer as terras marinhas e montes «de ninguém», exigiram maior rigor, recorrendo-se mesmo à intervenção judicial.

A tensão é nítida, quer entre o Bispo do Porto e os coutos de Gondomar e do mosteiro de Rio Tinto, quer com o próprio rei. Este, evidentemente, travava o processo de transformação de propriedade alodial, plena, ou em propriedade senhorial ou em propriedade de mão morta, com os inerentes privilégios que lhe desfalcariam o erário. Simultaneamente tratava o processo de expansão da área de jurisdição senhorial, reforçando a presença régia através dos magistrados judiciais, que lhe assegurassem implantação local.

Em 1332, o Bispo, o Cabido, os mosteiros de Rio Tinto e Cedofeita, assim como o abade de Campanhã, unem-se em protesto contra o rei.

De facto, D. Afonso IV, por carta do ano anterior, mandava ao juiz de Gondomar que puzesse a pregão, para arrendamento, os terrenos maninhos que «jaziam sobre a azenha de Culmieira»(5). As entidades citadas apressam-se a declarar que os «seus homens estão na posse deles, lavrando, pascendo e talhando como termo e pertenças do Pinheiro e Culmieira, desde tempos imemoriais e que o Reguengo é de Val de Atães para lá».

A Culmieira (vide mapa 1), ponto de tensão de poderes em expansão, a que o aumento demográfico não é alheio, seria objecto de sentença judicial já em 1321. 0 juiz de Gondomar, ouvidas testemunhas, demarca o termo de Campanhã pelo Seixo Branco, daí pela Fonte de Barcos, daí ao Maranço e direito à Pereira e à Castinheira(6), lugares da actual freguesia de Valbom.

Um segundo foco de tensão, desta vez com a abadessa de Rio Tinto, situava-se na Serra da Pia, cujos matos e pastos eram indispensáveis aos caseiros do Cabido em Vila Cova e em Contumil, dada a complementaridade entre área cultivada, área de soutos e área de matos na economia medieval.

As arroteias que «os de Rio Tinto» ali levavam a cabo, exigiu um contrato de Composição, em 1326, entre o Cabido e a abadessa do mosteiro: colhidos pelos de Rio Tinto os frutos pendentes, ficariam as terras sem cultura para pastos e matos dos de Vila Cova e Contumil(7).

Mas, no ano seguinte, as mesmas terras voltam a ser disputadas e a questão levanta-se de novo. 0 Bispo do Porto, D. João Gomes, estabelece os limites de Contumil, pela demarcação antiga, anterior à usurpação da abadessa. Esta é intimada a «largar mão das terras que tinha usurpado da Aldeia de Contumil». 0 meirinho da Maia, Gil Garcia, com alçada sobre Rio Tinto, e Vasco Pereira, meirinho-mor de Entre-Douro e Minho, encontraram resistência por parte da abadessa, D. Leonor Gomes, que apelara para Roma, não admitindo assim a posse do Cabido sobre terras de Contumil(8).

Estas questões mostram-nos como era vasta a área de Campanhã ao findar a Idade Média. Da Culmieira (limite com Valbom), à Serra da Pia, onde são reivindicados direitos de utilização, como área de apoio à área cultivada de Contumil, o aro de Campanhã ultrapassava os limites da actual freguesia, como já notaramos para a Alta Idade Média.

Observamos também que se, jurisdicionalmente, a população está dividida entre o couto do Porto e o julgado de Gondomar, a sua unidade era assegurada pela igreja de Campanhã, cuja freguesia abrangia indubitavelmente Contumil.

Por esta época, a igreja ter-se-á enriquecido com a notável escultura em calcário de Nossa Senhora de Campanhã, envolta em lendas, e atribuída ao século XIV.

D. Domingos de Pinho Brandão inclui-a entre as mais belas imagens de Nossa Senhora da Diocese do Porto.

Que sabemos da igreja paroquial no dealbar da Idade Moderna?

A igreja de Santa Maria de Campanhã possuía, no século XV, em edifícios anexos, uma albergaria(9). Esta informação confirma-nos que ali passava a mais importante via para Trás-os-Montes, partindo de «junto à igreja de santilafonso onde começa o caminho da Cone de Roma» (10). «Seguia o caminho pela actual rua de Santo Ildefonso onde existia o hospital de invocação do mesmo santo e uma albergaria, passava no largo do Padrão onde havia um cruzeiro que lhe deixou o nome, seguia a Mijavelhas, onde estava a ponte das Patas e se estabeleceu um hospital de gafos, atravessava pelo Bonfim e ia à Corujeira. Daí partiam dois desvios: o mais antigo descia a Campanhã, passava entre o Rio Tinto e o lugar de Azevedo, ia à ponte de Socorido, a Cabanas e daí a Vale de Ferreiros. Este rumo é citado quer na carta de couto de Rio Tinto quer nas Inquirições de 1258. 0 outro desvio ia a Vila Cova, e pela Ranha, passava junto ao mosteiro de Rio Tinto, subia por S. Sebastião, Venda Nova e, em Vale de Ferreiros, juntava-se ao antecedente» (11).

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Nossa Senhora de Campanhã

Terá sido a albergaria da igreja de Santa Maria de Campanhã, o mais antigo «mosteiro» dos cónegos Loios na diocese do Porto. Por volta de 1427, o Bispo D. Vasco li solicitara ao Bispo D. João de Lamego «que lhe mandasse alguns dos cónegos Loios para a sua diocese (...) e na chegada os agasalhou na Igreja de Santa Maria de Campanhã aonde juntamente moravam peregrinos»(12). Os cónegos seculares de S. João Evangelista ou Loios ali permanecerão até D. Vasco ser nomeado arcebispo de Évora. Os frades terão enfio recolhido a Vilar de Frades, só tendo voltado ao Porto em 1490 para convento, arrasado em 1834, no interior dos muros da cidade do Porto, e de que a toponímia conserva o «Largo dos Loios»...

Quando, em 1466, se refaz a divisão de rendimentos da diocese do Porto entre a Mitra e o Cabido, a Igreja de Santa Maria de Campanhã continua a ser atribuído ao Bispo. E assim, incluída no Censual da Mitra, de 1542, dela conhecemos, nesta data, o rendimento, o número de «vassalos» do Bispo, e os direitos que lhe devia. A igreja de Campanhã é taxada (tal como em 1320-1321) em 200 libras. Constatamos que ocupa uma posição intermédia numa escala de dez categorias, «de 24 libras para baixo» a «de 400 libras até 449» (13). Por ocasião da visita anual do Bispo, as freguesias eram oneradas com uma taxa, proporcional às suas possibilidades. Previam-se cinco escalões, contribuindo Santa Maria de Campanhã com o máximo, «visitação inteira» de «quinhentos e cinquenta e sete reis e meio e de censo e taxação sessenta e dous reis que sam por todos» (14).

Também as igrejas deviam às catedrais direitos, rendas e pensões, designadas por «Censorias». Na diocese do Porto, eram pagas em cereais. Santa Maria de Campanhã entregava anualmente no celeiro do Porto as «Censorias de pão» : vinte e cinco alqueires de centeio e vinte e cinco alqueires de milho. Mas não se tratará ainda do milho grosso, oriundo da América, e introduzido em Portugal entre l515 e 1525 (15).

As censorias eram pagas «do dia de S. Miguel de Setembro até ao dia de Todos-os Santos e passado o dito tempo tem de pena cinquoenta reis por dia» (16).

Segundo o Censual da Mitra, de 1542, o Bispo tem no «couro de Campanhã que está no termo velho desta cidade» 58 vassalos (17). 0 censo de D. João EI, de 1527(18), fornece conjuntamente a população dos coutos de Cedofeita, Paranhos, Rio Tinto e Campanhã.

Aquele censo indica 1395 almas e 310 fogos relativamente aos quatro coutos citados. Estes números, como os 58 vassalos de Campanhã, referem-se apenas às áreas coutadas, desconhecendo-se o peso demográfico da área fora do couto, como Contumil.

Quanto à administração da justiça no Couto de Campanhã, os moradores elegiam anualmente um juiz, que entrava em funções após confirmação pelo Ouvidor.

«E nos ditos coutos os juízes se elegem em cada hum afino por dia de Janeiro as mais vozes dos moradores do couto polla ordenaçam e tomadas as vozes de todos o juiz do afino passado traz a pauta das vozes ao ouvidor para limpar e o ouvidor alimpa com o dito juiz e sae o que tem de mais vozes por juiz o quall nam pode tomar vara nem fazer nada em seu ofiçio sem primeiro aver carta de confirmação do ouvidor e juramento de sua mão da qual jurdiçam se ussa por doações e pose de tempo 1mmemoriall»(19).

Trata-se, evidentemente, da jurisdição civil, reservada que estava para o rei a jurisdição criminal, atribuição do juiz da cidade do Porto.

Das decisões do juiz do couto, podia a população apelar para o ouvidor.

No processo de eleição, sem segredo de voto, e no desempenho das funções dos juízes, encontramos formas de organização dos moradores do couto, chamados a manifestarem «as mais vozes», que se manterão por todo o Antigo Regime. Ocorre-nos a possível ligação com a «pedra da Audiência» que sabemos ter existido em Campanhã. Situar-se-ia, em terreno público, no lugar da Formiga, vendido, em 1835, a Custódio Teixeira Pinto Basto por 6400 reis. «Enquanto à Pedra da Audiência seria mudada à custa do suplicente para o Pé da Igreja e posta em lugar que não estorvasse a passagem de pessoa algua»(20).

«Venda por 40 000 reis metal livre a Custódio Teixeira Pinto Basto, do Porto, de terra marinha junto à sua Quinta da formiga desta fregeusia e concelho de Campanhã (...)

Que pertencia ao público e por isso a queria possuir por título de compra (...)

Pequeno terreno público em que está sita a antiga Pedra da Audiência».

«Que enquanto à Pedra da Audiência seria mudada à custa do suplicente para o Pé da Igreja e posta em lugar que não estorvasse a passagem a pessoa alguma».
7 Agosto 1835

Poderia ter tido a função, desde a Idade Média, de assinalar, como os carvalhos seculares de outras freguesias, o ponto de reunião dos moradores que, em conselho, tomariam decisões de interesse colectivo, como a manutenção de caminhos e pontes, ou a utilização das águas.

Registada documentalmente, desconhecemos o destino da «antiga Pedra da Audiência» do couto de Campanhã(21).


(1) Camilo de Oliveira, «0 Concelho de Gondomar», vol. I, pág. l17.

(2) Ibidem, pág, cit.

(3) Ibidem, pág. cit.

(4) Ibidem, pág. cit.

(5) 0riginais do Cabido, Livro XII, fl. 5.

(6) lbidem, Livro XII, fl. 34.

(7) lbidem, Livro XXI, fl. 2.

(8) Ibidem, Livro XII, fl. 48.

(9) Pinho Leal, «Portugal Antigo e Moderno», vol. VII, pág. 293, in C. 0livª Gond. 1, 113/l14, nota 1).

(10) João Pedro Ribeiro, «Reflexões Históricas», Coimbra, 1835, pág. 82, citado em Carlos Alberto Ferreira de Almeida, «Vias Medievais», pág. 173.

(11) Carlos Alberto Ferreira de Almeida, «Vias Medievais», pág, 173 e 174.

(12) Pinho Leal, «Portugal Antigo e Moderno», vol. VII, pág. 293.

(13) Cândido Augusto Dias dos Santos, «0 Censual da Mitra do Porto», pág. 170.

(14) Ibidem, pág. 261.

(15) lbidem, pág, 151.

(16) ibidem, pág. 281.

(17) Ibidem, pág. 536.

(18) João Tello de Magalhães Colaço, «Cadastro da População do Reino», (1527), Lisboa 1931.

(19) Cândido Augusto Dias dos Santos, «0 Censual da Mitra do Porto», pág. 537.

(20) Arquivo Histórico Municipal do Porto (AHMP), Documentos de aforamento e venda de terrenos 4980 7 Agosto 1835.
Agradecemos ao Director do Arquivo Histórico, Dr. Manuel Real, todas as informações e o inestimável apoio que nos dispensou.

(21) A Pedra de Audiência de Avintes, «espécime único no País, onde se faziam os julgamentos, é considerado monumento nacional». Tem a data de 1742.C-G. Avintes, Boletim da Associação Cultural dos Amigos de Gaia, n.° 4, Abril de 1978, pág. 8 e 9.


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